17 de agosto de 2008

Sinais de Fogo

Não sou um leitor assíduo. Quero com isto dizer que não leio todos os dias e não ando sempre munido de literatura para qualquer ocasião. No Verão, porém, vingo-me. Sacio a vontade e a expectativa acumulada durante meses e consumo todas as páginas de todos os livros que me embalem no descanso.
Tenho obviamente livros fetiche, alguns dos quais estão compulsivamente presentes em conversas e momentos vários da minha existência. E procuro sempre partilhá-los, na esperança de encontrar outros que como eu os sintam com a mesma intensidade.
Provavelmente o melhor exemplo será Sinais de Fogo de Jorge de Sena. A minha paixão por esta obra é tal que o último ano da minha licenciatura praticamente só a ele foi dedicado. E orgulho-me muito de uma recensão crítica que sobre ele fiz. Para um dos melhores professores que encontrei na Faculdade de Letras. Há anos que não a lia e às vezes pergunto-me se hoje ainda seria capaz de a escrever.
Vou hoje aqui publicá-la na íntegra, na expectativa que mais alguém sinta vontade de conhecer este livro. Eu vou mais uns dias de férias e provavelmente vou voltar a lê-lo. Mas nada mais vale a pena dizer. Se tiverem coragem leiam estas linhas. Nem estão assim tão mal escritas. Pelo menos disso me convenceram. E pode ser que se entusiasmem.




Quanto de ti, amor, me possuiu no abraço
em que de penetrar-te me senti perdido
no ter-te para sempre-
Quanto de ter-te me possui em tudo
o que eu deseje ou veja não pensando em ti
no abraço a que me entrego-
Quanto de entrega é como um rosto aberto,
sem olhos e sem boca, só expressão dorida
de quem é como a morte-
Quanto de morte recebi de ti,
na pura perda de possuir-te em vão
de amor nos traiu-
Quanta traição existe em possuir-te a gente
sem conhecer que o corpo não conhece
mais que o sentir-se noutro-
Quanto sentir-te e me sentires não foi
senão o encontro eterno que nenhuma imagem
jamais separará-
Quanto de separados viveremos noutros
esse momento que nos mata para
quem não nos seja e só-
Quanto de solidão é este estar-se em tudo
como na ausência indestrutível que
nos faz ser um no outro-
Quanto de ser-se ou se não ser o outro
é para sempre a única certeza
que nos confina em vida-
Quanto de vida consumimos pura
no horror e na miséria de, possuindo, sermos
a terra que outros pisam-
Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti,
recebo gratamente como se recebe
não a morte ou a vida, mas a descoberta
de nada haver onde um de nós não esteja.

in Sinais de Fogo, 6ª ed., pp.505-506.




Sinais de Fogo é uma obra-prima da literatura portuguesa e constitui certamente um marco na sua época. Apesar de toda a acção se desenrolar num curto, mas importante, espaço de tempo -o ano de 1936-, a obra relata-nos importantes acontecimentos históricos, sobretudo a nível da Península Ibérica, e transmite-nos uma visão sobre a sociedade portuguesa nos primeiros anos do Estado Novo. É, por isso mesmo, um trabalho de inegável valor histórico, pois, independentemente de ser uma ficção, regista-se o cuidado colocado pelo autor na identificação dos acontecimentos
[1]. E, de resto, não há escrita histórica sem ficção.
O ano de 1936 é, de facto, marcante, pois o início da Guerra Civil de Espanha teve repercussões em Portugal, nomeadamente no plano político. Tinham passado oito anos do 28 de Maio de 1926, que impôs a ditadura. Era já uma época de desencanto para um determinado estrato da população portuguesa -subentenda-se, sobretudo, algumas elites intelectuais portuguesas-, que encarava com apreensão o regime vigente. Mesmo muitos daqueles que, como António Sérgio, tinham mostrado a sua concordância com a solução militar de 1928, estavam agora com a continuação de um regime que pensavam ser passageiro, pois entendiam que ele era necessário para acabar com o caos político da Primeira República. A situação era, pois, de desencanto; as pessoas ou estavam com o governo ou contra ele e nessas lutas não havia lugar para os indiferentes ou moderados (a esmagadora maioria). Este estremar de posições foi obviamente acentuado pelo advento da guerra em Espanha, que veio demonstrar claramente esta divisão.
Não foi, porém, intenção de Jorge de Sena criar uma obra histórica. Ele próprio se considerava um poeta
[2] e foi certamente como tal que escreveu este romance. Sena não nos coloca perante elaboradas descrições de espaços físicos ou de acontecimentos. A obra pertence quase integralmente a Jorge (curiosamente, ou talvez não, homónimo do escritor) e é pelos seus pensamentos e pelo seu desenvolvimento psicológico que vivemos integralmente as 500 páginas que completam o primeiro e único volume acabado do grande projecto intitulado Monte Cativo[3].
O romance inicia-se em Lisboa, no último ano de liceu da personagem principal Jorge. A Parte Primeira é um retrato da adolescência, de uma vida com poucas preocupações, onde se destacam -para além de Jorge- Puigmal e Mesquita. O primeiro, catalão de grande prestígio, é o móbil que introduz na história o problema de Espanha, em torno do qual se desenvolve toda a acção. Mesquita, por outro lado, é possuidor de uma grande aura de popularidade, que advinha do seu sucesso junto das mulheres e é através dele que Jorge de Sena vai primeiramente expor o outro principal aspecto da obra, que contém, efectivamente, uma profunda abordagem à sexualidade. A Parte Primeira é, porém, algo periférica relativamente ao resto da obra e serve sobretudo como capítulo introdutório. De facto, tudo se desenrola com uma enorme pureza de espírito, típica da adolescência onde todos os sonhos são possíveis, e mesmo determinados aspectos da sociedade portuguesa dos anos trinta são abordados aos olhos da pouca maturidade de Jorge. Nota-se, no entanto, um evoluir da personagem, que vai dando sinais de abandonar a adolescência, preparando-se para a entrada na idade adulta.
A Parte Segunda começa a dar corpo a toda a história do romance. No final da Primeira já a personagem Jorge se tinha apercebido do eclodir da guerra em Espanha, mas só com a chegada à Figueira da Foz, onde ia passar as férias de Verão, Jorge começa a tomar consciência de toda a situação. Era o Verão quente da Península que agora o iria envolver e onde directa e indirectamente irá participar, embora sempre de uma forma algo afastada, ou seja, mais relacionada com os seus próprios interesses do que com as suas convicções, pois Jorge nunca se tinha preocupado com questões políticas e não tinha, de resto, sobre elas raciocionado: «Eu não entendia nada do que tinha acontecido, e não compreendia como uma revolução -coisa que a minha família passava, em tempos idos, no quarto escuro- podia obrigar as pessoas a uma agitação daquelas e a que quererem regressar precipitadamente. As revoluções eram feitas por militares e por revolucionários, que se preparavam para isso, e esmagadas pelos governos que as atacavam, sendo depois saudados por magotes de povo à moda do Minho.»
[4]
É pelo contacto com os seus amigos e com a situação da Figueira em 1936, que Jorge vai despertando para a realidade que o rodeia. Nota-se, no entanto, que é um lento despertar, pois Jorge, cheio de preconceitos relativamente aos espanhois e sobretudo influenciado por uma situação portuguesa, evidentemente diferente e mais calma, considerava que tudo se devia ao facto de os espanhois serem gente medonha e de as suas revoluções serem muito mais violentas que as nossas. Esta impressão vai-se, porém, desvanecendo, muito por influência dos dois espanhois que o tio de Jorge tinha acolhido em sua casa e que andavam fugidos da polícia.
Jorge de Sena apresenta-nos, então, outra das personagens fulcrais da obra: o Rodrigues. Esta é uma das figuras mais bem conseguidas, pois é com Rodrigues que Jorge tem algumas interessantes conversas, que vêm colorir intensamente alguns aspectos da história. Mas de uma forma dramática, pois Rodrigues é uma personagem intensa, capaz de nos incutir respeito e simultaneamente pena e repúdio.
É na Parte Terceira que outra personagem se revelará importante. Mercedes, que já anteriormente tinha aparecido, envolve-se, agora, com Jorge e é à volta deste romance que a história vai descortinar todos os seus contornos. Zé Ramos -irmão da Mercedes- numa conversa com Jorge, explica-lhe um elaborado plano que visa uma fuga para Espanha, na qual iriam lutar ao lado do povo espanhol contra a ameaça da ditadura franquista. Ora, o inesperado namoro, que agora acontecia, punha em causa todo o plano, pois Mercedes estava noiva daquele que seria o plioto do barco. É desta forma que Jorge se vê agora directamente envolvido num acontecimento que o ultrapassava e com o qual nada queria ter a ver.
Uma importante conversa entre Jorge e Carlos Macedo -outro dos amigos da Figueira e um dos cabeçilhas da fuga- que decorre no capítulo XXV, parece resumir toda esta parte da obra. A fuga, que acontece de facto, só é possível por um episódio de prostituição e traição que envolvia Rodrigues e não por apoios políticos declarados. É nestas particularidades que Jorge de Sena nos coloca perante situações demasiadamente reais, levando-nos a viajar sempre na corrente de pensamento da personagem principal. A Parte Terceira acaba com a fuga nocturna para Biscaia, mas também com a chegada de Ramiro -primo de Jorge-, um elemento relevante pela sua posição marcadamente favorável ao regime e, por isso mesmo, relativamente afastado das posições das restantes personagens.
A Parte Quarta é, sem dúvida, um modelo para todo o livro. Praticamente o desenlace de todo o romance aqui se verifica e a história parece estar acabada, pelo menos nas suas ideias centrais. Jorge encara a partir daqui a realidade que o rodeia com outros olhos e já nem mesmo o seu amor por Mercedes parece ser verdadeiro. É uma parte profundamente marcada pelos pensamentos da personagem, que parece já não estar agarrado a determinadas ideias e comportamentos que o acompanhavam na chegada à Figueira. Jorge está agora diferente e encara de uma maneira diversa o mundo que o rodeia. Os seus pensamentos já não estão apenas ligados ao quotidiano da sua vida e as suas meditações alcançam uma maior transcendência, englobando agora a sociedade em que vive.
A Parte Quinta é, por estas razões, uma continuação da anterior. Mas mais profunda, pelo menos no que concerna à análise do espaço social e político do Portugal dos anos trinta. O autor encarnando verdadeiramente a pele da personagem e abordando a revolta abortada dos marinheiros dos navios da armada Afonso de Albuquerque e Dão, revela-nos as suas preocupações. Portugal encontrava-se incapacitado de derrubar um regime como do Estado Novo no auge da sua existência. Jorge apercebe-se, então, da necessidade de uma revolução e é assim que Sena encerra o seu romance com a constatação dessa necessidade e, simultaneamente, incapacidade: «Sùbitamente, senti que a solidão que era a minha, a de saber que sabia e não sabia o quanto sabia, não era senão um caso particular de outra solidão maior que se abatera sub-reptícia sobre tudo e todos, e a que todos se sujeitavam sub-reptìciamente.(...) Ainda que se entusiasmassem umas às outras, seria sempre um entusiasmo triste, como forçado pela necessidade de compensar o que nem saberiam haver perdido ou abandonado.»
[5]
É extraordinariamente difícil analisar uma obra de tamanha grandeza como Sinais de Fogo. O primeiro contacto com o trabalho do autor é, efectivamente, algo de muito especial, pois como grande poeta que é, Jorge de Sena sabe jogar com os nossos sentimentos e com as nossas emoções. Muitas vezes de uma forma cruel, o realismo da escrita de Sena é algo de fenomenal, que nos coloca perante a nossa própria realidade, envolvendo-nos, aproximando-nos e tornando-nos parte integrante da sua escrita. É, sem dúvida, um romance psicologista, de uma similaridade impressionante com a vida real e que consegue importunar o mais desatento dos leitores.
Todo o romance é preenchido pela passagem de personagens-tipo, que ocupam o seu específico lugar no enredo delineado pelo autor. De uma forma (algumas vezes) mordaz, Jorge de Sena vai caracterizando a sociedade da sua juventude, a mesma que em grande parte o tornou um emigrante, pois embora o seu exílio fosse voluntário ele deveu-se sobretudo ao facto de não poder em Portugal fazer aquilo que mais gostava: escrever. «Em Portugal, se eu me tivesse lançado na engenharia particularmente, à margem da minha actividade oficial de funcionário, poderia ter ganho muito dinheiro talvez.(...) Mas se eu tivesse feito isso, quando teria sido o escritor que, em 1959, tinha títulos suficientes para mudar de vida? E esta mudança era, então, um imperativo da minha slvação como tal. O destino deu-me a opção -e eu não me arrependi ainda de a ter aceitado.»
[6]
Regressemos às personagens-tipo. Do primo Ramiro -salazarista convicto-, ao tio Justino -professor, jogador no casino e ex-militar, que nunca tinha serenado após a sua destituição-, passando pela mãe de Jorge -profundamente conservadora- e por Zé Ramos -comunista altamente inflamado nas suas crenças e que acreditava que só pela acção se poderia contribuir para reformar o mundo-, todos enriquecem o espaço social da obra, caracterizando-a e definindo-a politicamente. Aqui há que fazer uma referência ao homem republicano que nos aparece na Parte Quinta do romance; é uma personagem riquíssima, que simboliza perfeitamente o político da primeira República. Mas não só estas personagens: também Rodrigues e Mercedes -acima referidos-, cada um à sua maneira, vão preencher o espaço psicológico da obra, pois são frequentemente a razão dos pensamentos e das confusões de Jorge e estão na origem directa da mudança que o leva a largar definitivamente a puberdade e a entrar, consequentemente, na idade adulta -pelo menos maturidade de pensamento. Jorge passa de "criança" a poeta, naquele que parece ser o seu destino, absolutamente inesperado diga-se -a família de Jorge não tinha qulaquer tipo de consideração por poetas ou homens das letras que eram profundamente desconsiderados.
Sinais de Fogo vem enquadrar-se perfeitamente no trabalho de Jorge de Sena e é, de certa forma, o culminar de uma evolução como escritor. Já muitos traços do romance se encontram num outro livro de sua autoria intitulado Os Grão-Capitães, e muito particularmente num conto dessa obra intitulado Homenagem ao Papagaio Verde. Se lido em diferentes ocasiões -como foi o meu caso- quase se pode enquadrar a personagem Jorge nessa infância e família aí descrita. São evidentemente histórias diferentes, mas de uma enorme semelhança e verosimilhança de escrita e de pensamento, que nos conseguem emocionar. É esse, sem dúvida, o grande espírito e estilo da obra de Jorge de Sena, que por vezes parece passar (ingloriamente) despercebido em Portugal.


[1]No prefácio de Sinais de Fogo, 3ª ed., Edições 70, escrito por Arnaldo Saraiva, encontra-se a referência à investigação feita por Jorge de Sena, quer pessoalmente, quer com a colaboração de Luís Amaro.
[2]Mécia de Sena, "Prefácio" de Sinais de Fogo, 6ª ed., Lisboa, Edições Asa, 1995.
[3]Monte Cativo era o nome do grande romance de Jorge de Sena, que pretendia retratar a sociedade portuguesa entre os anos de 1936 e 1959. Sinais de Fogo foi o primeiro e único volume publicado desse grande projecto, que ficou incompleto.
[4]Jorge de Sena, Sinais de Fogo, 6ª ed., Edições Asa, 1995, p.67.
[5]Idem, ibidem, pp.529-530.
[6]Excerto de uma entrevista a Jorge de Sena, citada por Eugénio Lisboa, in Estudos Sobre Jorge de Sena, Lisboa, Editorial Presença, 1984, p.37.

Trabalho realizado em 1997 para a cadeira de História da Cultura Contemporânea, então (e espero que ainda) leccionada por Sérgio Campos Matos.

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